O PRESENTE DA MÃE
Miguel Jorge
Agora que completara dez anos sentia-se um rapazinho e, portanto, seus sonhos ocupavam maior espaço em sua cabeça, e eram pequenos e eram grandes, como se desejasse conhecer mais que aquele pedaço do mundo que o cercava.
Vivia com a mãe em um barracão, na zona leste da cidade. O pai os abandonara quando ele tinha quatro anos de idade. Dele guardava uma leve lembrança. Era mesmo lembrança? Ou seria uma coisa feita de sensações meio que envolvidas em uma fumaça acinzentada? Ou seria sonho? Desejo? Era bem assim: o pai o levava, num dia de domingo, a passear no parque. Montado no pescoço daquele homem que mal conhecera o mundo lhe parecia maior e mais visível. Via, com alegria, o lago, as flores, as borboletas, os paturis, os passarinhos que, rápidos, voavam daqui pra acolá, atrás de insetos. Havia um clamor de alegria no tempo. O sol aparecia entremeado com gotas de chuva que desciam brilhando do céu como num espetáculo de cores. Tudo era perfeito. Depois, o pai atirava uma pedra no lago e todas aquelas imagens desapareciam num repente.
Não era muito fácil viver assim sem pai. A mãe trabalhava o dia todo, como se fosse um relógio, em uma fábrica de reciclagem. Ainda assim, nos finais de semana, costurava no ateliê de modas da dona Sofia. Os olhos da mãe brilhavam ao falar dos modelos criados pela mulher, uma polonesa cheia de vida e de criatividade.
Foi a mãe que lhe ensinara a combinar de cores: vermelho combina com o branco e o preto. A cor marrom exigia sapatos e meias da mesma cor. Os complementos são importantes no figurino masculino.
A casa era fria, mas não era feia. Tinha uma luz cristalina que atravessava a vidraça onde ficavam os móveis. Na verdade, uma cômoda e um criado-mudo com uma gaveta onde ele guardava suas coisas. Poucas, na verdade. Mais do que tudo, a casa guardava suas falas, seus gestos e o desejo seguro que um dia ele iria melhorar de vida. Essa melhora de vida era uma das suas reflexões. A mãe sempre a dizer: você vai estudar para ser alguém. Quem sabe um doutor de curar as pessoas, ou de advogar para a causa dos pobres. Para isso, a mãe pagava religiosamente o colégio. Comprava cadernos e livros, canetas. Vez por outra lançava sobre ele um olhar de vitória para que compreendesse o que iria lhe dizer: agora, agarre firme em seus estudos, e não pense somente em futebol.
O silêncio habitava a casa durante o dia. As portas, as janelas, as paredes, o quintal, as árvores faziam cumplicidade com os fragmentos das suas ideias.
A mãe dava-lhe cinco reais por semana, que era para comprar um picolé, um chiclete, um doce. Era tudo aquilo que um menino precisava para atravessar os dias, e manter o encanto expressivo de felicidade nos olhos.
Há cerca de três meses guardava o dinheiro da mesada e mais algum que ganhava engraxando sapatos dentro de uma lata de chá. A lata era bonita e redonda, tinha até a cara de uma mulher estampada no rótulo. Ele queria comprar um presente para a mãe. Qual seria o presente? Um colar de pérolas azuis que vira numa loja de bijuterias. Quanto custava? 150 reais e nenhum centavo a menos. A vendedora olhava-o com ares de dúvida, desconfiança, abreviando as palavras.
– Volto depois.
Levava consigo a certeza de que compraria aquele colar. O dinheiro contado, dia após dia, muito bem guardado dentro da lata enterrada no fundo do quintal entre as raízes do pé de manga e o do abacateiro, era seu maior segredo. Mas, por que naquele dia de visita ao esconderijo a lata não estava mais lá? Aflito, olhou o buraco aberto no chão. Viu os caminhos por onde mãos atrevidas caminharam e surrupiaram a sua pequena fortuna. Muitas coisas passaram pela sua cabeça. Quem poderia ter roubado o dinheiro que juntara com tanta dificuldade? Sobre seus olhos passaram as manhãs, os dias, os afazeres, as pessoas, as cadeiras do colégio, o campo de futebol, os gêmeos Tico e Teco. Sim, Tico, bem que poderia ter sido ele. Será que, no campo de futebol, entre uma pelada e outra, ele soltara a língua? Não, não seria tão bobo a esse ponto. Ou falou sem pensar? Acontece. Mas e se suas suspeitas fossem infundadas? Quando conheceu o Tico no colégio não dava ouvidos às suas conversas. Achava que ele tinha um jeito sacana de zombar dos sentimentos dos outros. O Teco, seu irmão gêmeo, era louco por avião e falava que queria ser aviador. O Tico só queria vida boa. Suspeitava até que ele usava droga.
O pavor da dúvida tomava conta do seu espírito como um círculo vicioso. Quem fizera aquela maldade com ele? Ah! Sim! Lembrava agora que falara com o Tico e o Teco do desejo de comprar um presente do Dia das Mães.
– Vou comprar um presente para a minha mãe e você?
– Isso é coisa de maricas.
– Mas é sua mãe, Tico!
– E daí? Deixo pra você e o Teco se preocuparem com essas bobagens. E por acaso o moleque aí tem grana pra comprar presente pra mamãe?
O olhar do Tico era de cobiça. Desejava saber o esconderijo da grana. Uma pista mínima que fosse valeria a pena.
– Não vai falar não, seu moleque? Aposto que não tem é nada nessa merda de esconderijo.
– Tenho dinheiro, sim.
– Então me mostra.
–Está guardado.
– Onde?
– Segredo.
O Tico sorriu de canto de boca, do jeito sacana dele.
– Aposto que eu sei onde você esconde essa grana.
– Nem os passarinhos sabem.
– Passarinhos?
Agora tinha a certeza. Foi o Tico quem roubara seu dinheiro. Mas o que fazer?
Não tinha coragem de enfrentar o grandalhão. Seu palavreado debochado, sua cara de malandro o atemorizavam. Mas o dinheiro roubado ia e voltava na sua lembrança. Precisava descobrir tudo. Tinha meios para isso. Era preciso criar coragem. Estava resolvido a tomar uma decisão.
No outro dia rondou a casa do Tico. A janela do quarto estava aberta. Não havia ninguém na casa àquela hora do dia. Deu um jeito de saltar o muro. Pulou a janela. Agradeceu a Deus por ninguém ter presenciado sua loucura. Uma profunda curiosidade de descobrir tudo tomou conta do seu espírito. No entanto, sentiu-se envergonhado, como se fosse um ladrão. E se alguém o pegasse ali de surpresa?
A casa dos gêmeos era bem maior e melhor que a dele. Havia um excesso de gavetas nos móveis. A cama do Teco estava arrumada. Aviões de tudo quanto era tipo e em várias posições decoravam a parede que ladeava sua cama. Até um aviãozinho feito de jornal pousava, sereno, sobre um dos travesseiros. A cama do tico era uma maçaroca só. Roupas atiradas por todos os lados. Olhou debaixo do colchão. Nada. Apenas umas revistas de mulheres nuas. Abriu as gavetas. Teve medo de tocar nas coisas. Pareciam proibidas. Deu-se conta de que o dinheiro não podia estar em lugar tão fácil de achar. Ouviu um ruído. O coração saltou pela boca. Esperou um pouco. Nada. Repetia todo tempo: eu vou achar o meu dinheiro. Agora o ruído voltava. Era verdadeiro. Rápido, meteu-se debaixo da cama. Encolheu-se todo. Naquele momento arrependia-se de ter entrado naquela casa. Tico abriu a porta com força e, rapidamente, tirou umas notas dentro de um buraco feito na parede. É o meu dinheiro, pensou. O malandro está com o meu dinheiro. Segurou a raiva. O desejo de brigar. De tomar o que era seu.
Tico saiu às pressas e no quarto ficou a impressão de vazio. Provavelmente o seu dinheiro estava guardado naquele buraco feito na parede. Para lá se voltavam todos seus pensamentos. Achou a lata de chá e duas notas de cinco reais grudadas uma na outra. Meteu-as no bolso. Saltou a janela. Não deixara vestígios de sua passagem por lá. Na sua mão restavam apenas os dez reais. Chorou de raiva. Chorou mais ainda porque não podia mais comprar o colar de pérolas azuis para a mãe.
A noite lá fora levava parte de sua infância e o fazia entrar no mundo dos adultos. Achava-se inquieto. Ficou imóvel quando a mãe entrou em seu quarto.
– Está chorando, filho?
– Não, mãe.
A mãe adivinhava coisas. Seus olhos dentro dos dele pareciam adivinhar tudo.
– Venha cá, Vicente, me dê um abraço.– Mas eu queria...
– Não fique infeliz por isso, meu filho.
A mãe o consolava com seu carinho, suas palavras. Esse era o segredo da mãe, intuía as coisas e não dizia nada além do necessário. Quando ela enxugou suas lágrimas de um jeito feliz como se acabara de receber um presente, ele lhe disse.
– Comprei uma rosa para a senhora. Uma rosa vermelha.– Que presente lindo para o dia das mães, filho!
. – Mas, um dia, ainda vou comprar uma casa e um colar de pérolas azuis para a senhora. Prometo!
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